Para dar início às minhas postagens neste novo blog, recorto alguns trechos do livro “Memória e Vida”, de Bergson. Lemos esse livro nas férias para iniciar uma aproximação teórica com as questões sobre o tempo e a memória e para voltar ao trabalho mais conectados com nosso projeto de pesquisa. Hoje, relendo estes trechos após duas semanas de trabalho prático e algumas refexões sobre o tema, vejo que minhas percepções sobre o que havia grifado também mudaram … como é da natureza misteriosa da memória: brincar com um presente preenchido de camadas e camadas de passados. Minha leitura instantaneamente atualizada possibilita novas e reveladoras conexões.
“A memória… não é uma faculdade de classificar recordações numa gaveta ou de inscrevê-las num registro. Não há registro, não há gaveta, não há aqui, propriamente falando, sequer uma faculdade, pois uma faculdade se exerce de forma intermitente, quando quer ou quando pode, ao passo que a acumulação do passado sobre o passado prossegue sem trégua. Na verdade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. Inteiro, sem dúvida, ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos, quisemos desde nossa primeira infância está aí, debruçado sobre o presente que a ele irá se juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo de fora”
“Com efeito, que somos, que é nosso caráter, senão a condensação da história que vivemos desde nosso nascimento, antes dele até, já que trazemos conosco disposições pré-natais? É certo que pensamos apenas com uma pequena parte de nosso passado; mas é com nosso passado inteiro, inclusive com nossa curvatura de alma original, que desejamos, queremos, agimos.”
“Trata-se de recuperar uma lembrança, de evocar um período de nossa história? Temos consciência de um ato sui generis pelo qual nos afastamos do presente para nos recolocarmos, primeiro no passado em geral e depois numa certa região do passado, trabalho de tenteios, análogo ao ajuste de um aparelho fotográfico. Mas nossa lembrança continua em estado virtual; dispomo-nos assim apenas a recebê-la adotando a atitude apropriada. Pouco a pouco, ela aparece como uma névoa que se condensasse; de virtual, passa ao estado atual; e, a medida que seus contornos vão se desenhando e sua superfície vai ganhando cor, tende a imitar a percepção. Mas permanece atada ao passado por suas raízes profundas, e se, depois de realizada, não se ressentisse de sua virtualidade original, se, ao mesmo tempo que um estado presente, não fosse algo que contrasta com o presente, nunca reconheceríamos como lembrança …”
“Assim nasce a ilusão de que a lembrança sucede a percepção. Mas essa ilusão tem outra fonte, ainda mais profunda. Provém de que a lembrança reavivada, consciente, causa em nós a impressão de ser a própria percepção ressuscitando sob uma forma mais modesta, e nada mais que essa percepção. Entre a percepção e a lembrança haveria uma diferença de intensidade ou de grau, mas não de natureza. (…) A lembrança de uma sensação é coisa capaz de sugerir essa sensação, ou seja, de fazê-la renascer, fraca primeiro, mais forte em seguida, cada vez mais forte à medida que a atenção se fixa mais nela.”
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